25.10.09

Poejo Vs. Pena













O trabalho de Gonçalo Pena tem origem no fenómeno da pintura, desenvolvendo-se maioritariamente nesse suporte. O autor entende a representação visual e plástica, como uma actividade definidora do humano enquanto espécie. No entanto tal não se fez, durante todo o processo de desenvolvimento do seu trabalho, sem uma permanente crivagem crítica motivada pela suspeita da obsolescência técnica, e logo política, do pictórico.

O enquadramento histórico moderno encaixou, não sem violência e abuso, as leituras dos artefactos pictóricos numa linha paralela à evolução socio-económica, tecnológica, civilizacional, vista e dinamizada por poderosos catalisadores ideológicos como foi, a título de exemplo, o Marxismo. Perante a dispersão efectiva e actual de caminhos e visões sob a qual se formou, como produtor; perante a promessa de liberdade, geradora de possibilidades corpóreas e extra-linguísticas da pintura, encontrou-se, o autor enquanto pintor perante uma encruzilhada; Se por um lado a sua formação ideológica lhe forneceu academicamente todos os instrumentos conceptuais para criticar a magia, é por outro lado, iniciáticamente, que esses lugares obscuros se mantêm como portais e veredas incontornáveis para a exploração da matéria obscura, dos espaços vazios, dos monstros que o sono da razão faz emergir.

A verdade é que, nunca tanto, como no presente, a rarefacção formativa dos indivíduos e por consequência, do corpo social, destrói as fundações institutivas das várias ordens de discurso. As desordens sexuais, “mágicas”, passionais, à medida que são nomeadas, ordenadas, policiadas e eventualmente banidas, tornam-se na sua essencial irredutibilidade, pela via da perda de efectividade das teias ideológicas do dispositivo, ameaças ou veículos de potencial revolucionário, consoante o lado da barricada de onde se perspective este conflito surdo.

O universo pulsional, a natureza revoltada é para Gonçalo Pena o lugar absolutamente fundamental como origem, ou 'motum' poético, enquanto combate para a possibilidade de uma efectividade revolucionária da arte, hoje, agora. Este ponto de origem, o lugar perigoso de toda a ignição catastrófica gera múltiplas estratégias, as quais se constroem todas a partir de um afundamento do soma, da zoe, na vivência dolorosa de uma fractura essencial. Mas não nos esqueçamos que se vive um conflito permanente, conflito esse, que numa descrição apostasiada no mito, poderíamos afirmar originada na expulsão do éden, ou na violência social da normalização no indivíduo. Não é inocentemente que se evoca Rousseau aqui; o ápodo do romantismo é constantemente a tatuagem da ignomínia aplicada ao revolucionário, ao que descobre no universo passional a ameaça do fim e a possibilidade do início, a seiva do ritual de passagem.

Este lugar, que se oferece a uma evocação fora da história, é passível de ser explorado das mais diversas maneiras. Retirando-se a sua experimentação fora das narrativas oficiais ou simplesmente, do poder, descobre-se um universo de legibilidade pletórica, torrencial no seu modo de conectividade transgressora intratextual, extratextual. Os modos de dar à consciência o dom da experimentação de tal universo foram desde o início imediatamente marcados no tempo ou explanados no espaço. A pintura surge assim sempre fora de um tempo histórico como forma de fulgurar do mito à consciência. Entende-a no entanto, o autor, como uma fonte de experimentação nos dois sentidos, de quem a faz e de quem a vê. A pintura dá a ver. Mais; fenomenologicamente é o lugar singular do erotismo imediato na matéria. A pintura é também, por esse caminho, geradora de processos de vivência que no contexto de uma existência fracturada assume os contornos de luta. Da nossa experiência formativa (bildung) pelas imagens que herdámos, recuperamos agora, na era da instabilidade dos textos, invólucros, como corpos-grafemas, despojados agora da sua função significante, estrita aos quadros conceptuais pelo qual se erigiram em tempos como signos arquetípicos. Deste depósito com concorrências à prática do consumo transversal, fragmentário, casuístico, abrem-se estes signos à profanação, isolamento, reorganização e posterior reutilização, desta vez sujeitos a uma linguagem lutuosa ou revoltada, anti-poder.

A pintura pode constituir-se manejada, numa fonte permanente de retribuição, um manifesto possível do que foi banido ou subjugado. A consciência deste percurso convida à reformulação num quotidiano indigno do lugar denunciador que o fantasma opera na dramaturgia clássica. A “exigência de reparação”. A própria natureza frágil e espectral constitui-se como a expressão exacta do desafio face às formas de dominação espectacular. Retenhamos então a ideia de uma pintura como fonte de expressão que re-opera em efígie, simbolicamente, os fragmentos dessa unidade perdida de um Éden.

Da maturação deste trabalho desenvolvem-se possibilidades transmutadas por outros suportes possíveis, filme, instalação, marcações de tempo, formas de dispersão ou concentração. Os elementos representados serão sempre estas figurações de relação arquetípica recuperadas desse depósito comum, repensadas, reconfiguradas, recombinadas de modo a trazer à consciência mais uma vez o outro das formas sociais em permanente processo de negação. Para tornar isto possível tem sido fundamental, a montagem de laboratórios intrínsecos à tradição pictórica e simulacral. Tais laboratórios têm lugar, no trabalho de Gonçalo Pena, fundamentalmente, em pintura. Os materiais são o espaço e as suas formas de representação, os elementos e a sua forma de ser e de povoar, habitar. Paralelamente e de modo insistente investiga lonjuras (arqueologia) ideológicas e ideográficas, símbolos, relações, formas de dominação, hierofanias, hierogamias, heterofagias. A pesquisa recobre o processo clássico da invenção da imagem, recorrendo a todas as estratégias passíveis de conduzir a uma efectividade pictural.

Como se depreende desta introdução, a pintura não é para o autor um fim em si, mas o modo mais directo de expressão e experiência de um programa de questionamento e retribuição. Por isso é natural o interesse que, exactamente dentro do mesmo programa “político” e sem quaisquer considerações de valor ou obsolescência, suscita o filme como lugar de narrativa induzida no instante (tableau-vivant) ou imagem-movimento; a cenografia e o seu eco fotográfico. No lugar oposto à realização poética realiza-se a manipulação permanente do espólio comum do imaginário.

André Poejo (2009)